sexta-feira, 31 de março de 2017

Karen Beta

Bartolomew, Bart para os próximos se ele tivesse algum, estava sentado em sua sala de estar quando a campainha tocou. Levantou-se com cuidado para que não fizesse muito barulho para o caso de não querer atender a porta. Fazia-se um tempo que odiava qualquer contato com humanos, ainda mais os que o olhavam de forma superior como se ele fosse apenas um lunático.
Abriu a porta. Não havia ninguém. Seu rosto se entristeceu ao notar que era apenas mais uma brincadeira daquelas pessoas que o usavam como objeto de zombação. Socou a porta irritado e encarou o chão. Lá se encontrava um embrulho pequeno. Um lenço de seda vermelha. Pegou delicadamente aninhando entre seus dedos como um filhote de passarinho com asa quebrada. Olhou a procura de quem havia deixado o presente, mas não havia nada lá fora. Tudo continuava escuro, apenas o vento parecia sussurrar frases turbulentas para as almas perdidas.
Entrou em casa e fechou a porta silenciando a discussão do vento. Voltou a se sentar com curiosidade. Desdobrou calmamente o embrulho e descobriu... Sementes. Voltou a olhar sem entender o que aquilo significava quando notou letrinhas minúsculas escritas no pano. Guardou as sementes num papel e dirigiu o pano para a luz do abajur, para assim decifrar as letras.

Se a terra elas beijarem... Escuridão de Eros virá...

Bartolomew repetiu as palavras diversas vezes sem entender até que uma ideia alucinada começou a enraizar em sua mente. Sem parar para encontrar lógica saiu correndo para fora onde se encontrava um pequeno jardim, sem nenhuma planta na terra Arida e seca.
Cavou um buraco no chão com as próprias unhas ignorando a lama que sujava seus joelhos. Jogou as sementes no buraco e recitou as palavras do tecido. Queria entender o que aquela semente iria fazer, mas sabia que aquilo podia ser outra brincadeira daqueles garotos que viviam para vê-lo passar vergonha.
Pensou sobre a segunda frase, mas nada pareceu fazer sentido ou se encaixar com suas ideias. Eros... Eros era o Deus do amor, louvado por variadas culturas através do mundo.
Amor.
Uma palavra tão simples, mas que o tomava por inteiro.  Sentia tamanho amor por Karen que chegava a chorar por ela não nota-lo, não falar com ele, nem sequer saber que ele existia.
Todos os dias eles se encontravam no corredor da universidade. Ela com seu cabelo ruivo gravitando em volta de seu belo rosto onde se abrigava os mais belos olhos e a boca mais carnuda entre todos os mortais. Já ele com suas camisetas desbotadas, suéteres bregas, seu cabelo bagunçado e seus óculos quadrados fora de moda.
Bartolomew sabia que aquela criatura recém-criada pela luz jamais olharia para alguém como ele, jamais notaria sua presença, mas isso não diminuía sua obsessão por ela. Tudo remetia aqueles olhos verdes, respirar apenas para poder vê-la outra vez, aguentar as chacotas apenas para sentir seu perfume. Era por ela que ele vivia.
Pensou em sua voz doce, em como ela colocava as mechas do cabelo atrás da orelha com tanta afeição, como suas pernas se movimentavam quando ela desfilava pelos corredores.
Mas afinal o que estava fazendo ali fora feito um estúpido?
Chutou a terra, soterrando as sementes e voltou para dentro. Estava tarde. Tomou um banho e deitou-se para dormir. Lá fora uma tempestade resolveu banhar o solo com seu manto. Com o som da chuva dormiu.
Ás duas e cinquenta e sete da manha ouviu um grito. Acordou assustado e rapidamente desceu as escadas para ver o que estava acontecendo. A porta dos fundos estava escancarada. O grito se repetiu gelando sua espinha. Pegou uma faca e saiu pela porta, sua mão tremia tanto que temeu fazer papel de bobo com uma faca.
Seu quintal estava enlameado, a chuva continuava caindo. Deixou a faca cair. Não havia ninguém... Exceto um monte de terra no meio do quintal. Caminhou pela chuva até o monte de terra curioso, era onde tinha escavado o buraco da semente. Algo estava enterrado. Retirou um pouco de terra voltando a se sujar e olhou. A chuva esparramava a terra. Havia algo no meio do monte, parecia... Uma... Mão. Berrou e caiu para trás assustado. A mão começou a se mover em sua direção. O monte de terra tremeu, a chuva levou as porções de terra mostrando um corpo.
Aproximou-se do monte e olhou para o corpo. Era uma garota. Tocou em seus dedos, era real, de carne e osso e lama. Passou a mão em seu rosto para limpar e notou uma aparência familiar. A água continuou a lavar o corpo. Ela estava nua. Olhou mais uma vez para o rosto até que a garota abriu os olhos e agarrou seu braço com uma força descomunal.
-Barrr... Too... Lomiew... Mino mestrrre... – Sua voz era tão familiar que Bartolomew não podia acreditar. Conhecia aquela voz, mas não fazia sentido que ela estivesse ali, no seu quintal, nua.
-Karen? – Sussurrou. A garota sentou-se calmamente empinando os peitos. Acariciou o rosto de Bartolomew carinhosamente e abriu um sorriso malévolo.
Bartolomew agarrou a garota e a levou para dentro. Tentou ignorar o corpo nu da garota no seu. A levou para o banheiro e lhe deixou sozinha no chuveiro para que ela se limpasse.
-Bartolomew... – Ela sussurrou. Ele entrou no banheiro, mas a encontrou nua, com o chuveiro aberto. – Lave-me. – Implorou. – Agora sou sua Bartolomew, você me criou.
Ela encostou seu corpo ao de Bartolomew fazendo com que ele se excitasse. Começou a beijar seu pescoço a arrancar sua roupa, esfregar seus seios em sua barriga lhe causando medo e aflição. O que estava acontecendo? Como Karen havia parado ali e nua? Beijando alguém como ele?
Ou tudo estava errado ou tudo estava certo.
Karen beijou seus lábios com furor e desejo fazendo toda a lógica de Bartolomew se desfazer. Ele não se importava com o que aquilo podia significar, só queria aproveitar cada segundo. Puxou Karen para o chuveiro e se deixou levar.

v   

Karen Beta como costumava chamar Bartolomew estava sentada em frente a janela. Penteava seus belos cabelos para quando seu amado voltasse ficasse lunático com sua beleza. Ela adorava quando ele acariciava seus cabelo, beijava seu ventre, dizia poesias tão lindas no sussurro da noite. Tudo para que ela se sentisse a mulher mais linda a existir.
Odiava quando ele saia para estudar e para trabalhar. Não confiava nas outras mulheres lá fora, todas sedentas de atenção e com o ventre queimando de desejo. Poderiam querê-lo, possuí-lo, toma-lo dela. E isso ela jamais aceitaria. Bartolomew era apenas seu.
Fazia algum tempo que Bartolomew não a tratava mais como sua rainha suprema, seguindo cada passo seu, respirando o ar entre seus cabelos, sedento por cada informação sobre ela. Já não se sentia mais sua mulher especial. Era como se ele tivesse outra e isso fazia um ódio ardente crescer em seu peito.
Estava nua quando desceu as escadas e sentou-se na frente da porta. Estava quase na hora dele chegar.

v   

Bartolomew estava extasiado enquanto entrava no carro de Karen, a verdadeira Karen. Depois de dois meses com a outra Karen aprendeu todos os segredos e gostos da verdadeira Karen e vinha usando isso a seu favor, para chamar a atenção da garota.
Nos debates em grupo, Bartolomew sempre defendia o lado feminino como Karen. Sempre deixava um lírio em seu carro e cantarolava suas musicas favoritas quando ela passava por perto. Aos poucos a criatura de pura luz começou a nota-lo, a conversar com ele, rir de suas piadas e olha-lo com uma expressão apaixonada.
Naquele dia ela lhe deu uma carona. Estacionou na frente de sua casa e o acompanhou até a porta. Bartolomew sabia que não podia deixa-la entrar, não podia lhe explicar como morava com outra Karen, um clone, uma gêmea. Mas aquela Karen era diferente, era doce, cheia de luz, diferente da outra Karen, com seu sorriso diabólico, suas observações cruéis, uma criatura das sombras.
Karen olhou no fundo de seus olhos e se aproximou. Bartolomew a beijou demoradamente sentindo o gosto suave de seus lábios, todo seu romantismo, tão diferente da malicia de Karen Beta. Tudo que desejava estava tornando-se real e por mais que quisesse abandonar essa sua vontade de possuir Karen e se livrar de Karen Beta não conseguia evitar pensar em tê-las para si. A boa e caridosa Karen Original e a ardente e maliciosa Karen Beta.
Karen se despediu envergonhada com as maças do rosto levemente rosadas e um brilho tímido no olhar. Ela era a perfeição e gostava dele, DELE! E agora ele iria tê-la, possuí-la. Sua Karen. Talvez fosse possível ter as duas, a luz e a escuridão.

v   

Karen estava deitada na cama de Bartolomew, pela primeira vez com um lençol cobrindo sua nudez. Embaixo de seu travesseiro, onde uma de suas mão descansava, havia uma arma de Bartolomew comprada num momento de desespero para se proteger. Ela não a usaria, não agora.
Bartolomew abriu a porta do quarto e a viu deitada coberta. Tentou puxar conversa ou conseguir alguma coisa como caricias, mas Karen permanecia muda, com a raiva brotando em seu coração e se apoderando de sua mente com raízes perversas. Ele tinha outra, igual a ela. Havia visto quando ela o beijou na porta e como ele não respeitou o que ela sentia. O ódio a fazia trincar os dentes. Ser trocada por outra Karen, uma Karen com seu rosto e seu corpo, mas com uma ignorância e mediocridade notável.
Bartolomew não se importou com a falta de vontade de Karen. Estava excitado ao receber aquele beijo que não se importava com o que Karen estava sentindo hoje. Puxou o lençol de seu corpo e tirou suas roupas agarrando Karen na cama, pronto para penetra-la.
-Hoje não! – Murmurou Karen, mas Bartolomew não se importou, Era apenas uma coisa que ele desenterrara no quintal, pertencia a ele, era um objeto que ele teria que se livrar. Tecnicamente não era estupro na opinião de Bartolomew, mas para Karen era uma sentença de morte.
Desceu as escadas e pegou uma faca, estava afiada. Voltou para o quarto e subiu na cama. Karen estava de barriga para baixo de olhos fechados. Bartolomew sentou em suas costas e passou a faca vagarosamente pela espinha de Karen como se a acariciasse. Ela não se mexeu.
Ele sabia que tinha que mata-la senão nunca poderia ficar com o único amor de sua vida. A Karen por quem ele havia se apaixonado e que agora também o amava. Era ela que ele amava e não essa coisa repugnante que ele tirara da terra.
Levantou a faca e mirou entre as omoplatas, mas não pode desferir o golpe. Karen virara-se e encarava-o com uma arma, sua arma, apontada para seu rosto. Seu sorriso perverso iluminando seu rosto. Ela se retirou de baixo dele e pegou a faca. Ainda estava nua, mas agora seu corpo não lhe causava mais desejo.
Os dois desceram as escadas. Karen amarrou seus braços e suas pernas com um lençol rasgado, colou fita em sua boca e o deixou sentado no sofá com um cobertor cobrindo-o por inteiro menos seu rosto. Se sentou na frente dele com as pernas cruzadas. Vestiu uma camiseta larga que ele possuía e pegou seu telefone.
-Humm... Me parece que você andou ligando muito para essa tal de Karen não é? Ou melhor, para mim! Achou mesmo que eu nunca descobriria? Achou que eu sendo ela e tendo suas memórias nunca desconfiaria dos recados, da sua demora ao chegar a casa?
Bartolomew começou a chorar, mas Karen não se importou.
-Você me ganhou Bartolomew, fez tudo que queria comigo e agora está pensando em abandonar o barco? Não é assim que acontece Bartolomew e você vai aprender que não se podem ter duas mulheres sem riscos.
Karen procurou o numero de sua sósia e ligou. Colocou a mão na boca e disfarçou a voz num tom nervoso e desesperado.
-Oi? Karen? Por favor, vem aqui na casa do Bartolomew ele está febril e chamando por você. Não precisa chamar o medico porque eu já fiz isso. Obrigada, venha logo!
Karen desligou o celular e soltou uma risada nociva.
-Achou mesmo que eu iria embora e o caminho ficaria livre? Achou que me matando conseguiria aquela vadia? Pois bem Bartolomew, quem muito quer nada tem.
Karen caminhou até o quintal e começou a cavar a cova. A outra só chegaria dali a meia hora mesmo, melhor adiantar o serviço. Cantarolou “Hey Jude” enquanto cavava cada vez mais fundo. Quando achou que já era suficiente voltou para a sala. Bartolomew estava rastejando pelo chão em direção à arma. Ela a pegou e chutou as costelas de Bartolomew. Pegou sorvete na cozinha e voltou a se sentar saboreando cada colherada.
A campainha soou.
-Visita a essa hora! Quem será?
Pegou a arma e abriu a porta tomando cuidado para que Karen não a visse. Karen entrou sem olhar duas vezes para a garota, correu até Bartolomew e arrancou a fita de sua boca.
-O que aconteceu Bartolomew?
Karen Beta se aproximou da sósia malfeita e apontou sua arma para ela.
-Eu aconteci Karen.
As duas se olharam, uma com ódio e revolta e a outra com medo e horror. Karen original não estava entendendo.
-Fuja Karen, fuja! – Berrou Bartolomew.
-Coloca a fita de novo e senta no sofá. – Falou calmamente Karen Beta enquanto sentava-se em uma cadeira.
Karen obedeceu.
-Bem Karen – Nojo escorreu de seus lábios – Parece que somos parecidas. Mas que fique bem claro que a mais bonita sou eu é claro!
-O... que... vai acontecer? – Murmurou Karen.
-O que vai acontecer? – Caçoou Karen Beta com uma voz melosa. – Você vai morrer imbecil, bem na frente desse idiota que me trocou por você acredita?
-Por favor, não faça nada... – A voz de Karen foi silenciada por um tiro. Sua cabeça tombou para frente juntamente com seu corpo manchando o chão.
Bartolomew remexeu-se desesperado, tentou se arrastar até o corpo até que sua cabeça encostou-se a de Karen.
-Ela falava demais. – Murmurou Karen sem se importar com nenhum dos dois. – Agora meu caro você ficou sem nenhuma garota.
Karen caminhou até Bartolomew e retirou sua fita.
-Você é louca! Assassina! Matou a mulher que eu amava!
-Não, eu não matei ninguém. Karen não está morta Bartolomew, eu sou Karen agora e você não pode fazer nada para evitar.
-Vou chamar a policia e você vai apodrecer na cadeia!
-E vai dizer o que? Que o clone de sua namorada morreu aqui? Que eu sou uma feiticeira, uma bruxa? Você não tem escolha Bartolomew, não como tinha antes. Podia ter escolhido conquista-la antes de mim, podia ter escolhido não plantar aquelas sementes e podia ter escolhido não me trair, mas agora não pode fazer nada.
-Você não vai sair impune dessa!
-Na verdade já estou saindo, não tenho mais nada que fazer, você vai enterrar o corpo ou talvez possa estupra-la como fez comigo. Já eu vou-me embora para minha casa tomar meu lugar de direito. E nunca mais atravesse meu caminho Bartolomew ou então vou mata-lo. Estou sendo bondosa com você, deixa-lo vivo é algo muito altruísta de minha parte.
Karen vestiu as roupas de sua inimiga e pegou sua bolsa. Beijou os lábios de Bartolomew, mas ele a mordeu o que a fez chuta-lo diversas vezes nas costelas. Ela jogou uma faca perto de seu corpo para que quando ela saísse, ele se soltasse.
-Eu deveria mata-lo Bartolomew, mas em minha opinião, deixa-lo viver com a eterna culpa da morte de seu único e grande amor já é suficiente.
Ignorando os gritos de Bartolomew ela saiu pela porta e caminhou até o carro, seu carro na verdade. Deu partida e foi. Foi para sua nova antiga vida. Agora seria “A Karen” e ninguém poderia machuca-la. Colocou um óculos escuro, bagunçou o cabelo e colocou um cd do Metálica.
O mundo tremeria diante de sua presença.